segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

«ESCUTA, CHILE»

«A voz de Katyia Olevskaia era a voz de um anjo laico que, nas ondas da Rádio Moscovo, nos ofereceu doses de esperança durante os anos mais duros e negros da história do Chile. Katya desapareceu, longe da sua pátria soviética que já não existe, num exílio impregnado de derrota, como todos os exílios, sob um céu bem longe dos nublados crepúsculos moscovitas em que a sua voz se ia acendendo lentamente até alcançar o fulgor daquela saudação tão amada por tantas e tantos de nós, que esperávamos o calorzinho necessário que nos ofertava quando dizia «Escuta, Chile».
No meio do medo, enquanto os cães ocupavam as rua do Chile, alguém ligava um rádio, procurava em onda curta, e, num volume muito baixo, as companheiras e companheiros juntavam-se à volta do receptor para resistir, porque a resistência à ditadura forjou-se em tardes frias, em noites demasiado longas, exercendo o dever de clandestinidade primária que consistia em informar-se, em saber quem e quantos tinham morrido ou desaparecido. Mas essa forma de resistência, de clandestinidade a baixo volume, dava-nos também a certeza de não estarmos sozinhos no meio do terror, e a voz de Katya, ao anunciar « Escuta, Chile », era a única esperança que chegava até nós.
Esperávamos a sua voz de anjo soviético e laico no Chile e nos países de exílio. Como todos os anjos, Katya foi também um anjo puro e ingénuo. Era como um ser de romance, dos melhores romances de um tempo de que apenas restam recordações, porque a formidável ideia do soviete, da pátria soviética, do país dos operários, camponeses, estudantes e soldados, diluiu-se sem pena nem glória e sem que os crentes fervorosos dessa bela utopia – os anjos como Katya – pudessem fazer alguma coisa para o impedir.
Katya era a solidariedade no seu estado mais puro, a entrega total e sem outra razão que não fosse a poesia da luta, Katya era o Poema Pedagógico, de Makarenko, a noiva invisível dos Komsomol de Assim foi Temperado o Aço, o emblema Quixotesco do valente soldado Chapaiev, a ternura feroz de A Mãe, de Gorki, Katya era tudo aquilo condenado a desaparecer pela sua própria estatura.
Quando se desmoronou a União Soviética e o resto dos países do chamado socialismo real se entregaram à brutalidade mafiosa do capitalismo na sua pior expressão, a fase sem moral da acumulação primária, tudo o que Katya representava foi considerado obsoleto, imoral, condenável e ela foi testemunha da miséria moral a apoderar-se de tudo aquilo que alguma vez teve significado cheio de digna humanidade.
A sua voz a convidar « Escuta Chile », apagou-se, e é possível que não reste nenhuma gravação daqueles programas destinados aos que sofriam e para quem essa voz era única esperança que chegava do grande mundo.
Encontrei-me com ela em Moscovo, pouco antes de ir para o exílio final em Israel. Demos um passeio por aquela cidade invernosa e vimos velhos tolhidos de frio a vender as suas condecorações de heróis da União Soviética. Nunca me esquecerei de uma anciã que vendia um lote de fotografias da Segunda Guerra Mundial. Eram instantâneos da Rosas de Estalinegrado, uma esquadrilha de mulheres-pilotos que com os seus aviões foram o pesadelo dos nazis. Nas fotos viam-se as belas raparigas soviéticas, e a anciã que as vendia era uma delas. Katya olhou-me com azul tristeza, eu apertei-lhe a mão e afastámo-nos no mar de derrotados.
Katya Olevskaia devia ter recebido a mais elevada gratidão por parte dos chilenos, mas tal não aconteceu. Os seus queridos amigos, Virgínia Vidigal, José Miguel Varas, Cristina de Largo, não falharam e devotaram-lhe todo o amor solidário que lhes foi possível. Mas o País, empenhado em esquecer a épica e construir-se a si próprio sem memória, não correspondeu.
Katya Olesvskaia morreu num país distante, sob outro céu, porque assim se apagam as vozes dos anjos soviéticos e laicos.
Escuta, Chile: liga um rádio antigo, procura em onda curta, reúne os que te são queridos num acto necessário de resistência e recordação. O silêncio do éter dir-te-á que a voz doce de Katya desapareceu para sempre.»

Este é um dos contos de autoria de Luis Sepúlveda publicado em livro sob o Título «histórias daqui e dali».
A razão que me moveu para a sua transcrição foi por encontrar semelhanças entre o não reconhecimento, por parte do Estado Chileno, pelo papel desempenhado por Katya em tempos muito difíceis e o não reconhecimento, como devia, do Estado Português a uns tantos portugueses que de lá bem longe, através da Rádio Portugal Livre, deram voz à resistência contra a «sinistra máquina da ditadura» que governou Portugal durante 48 anos.
Aurélio Santos, Veríssima Rodrigues, Maria Piedade Morgadinho, entre outros, também ainda não tiveram direito à mais alta condecoração que o Estado Português lhes deve (ainda o podem fazer) mas, há pouco tempo, quando comemorava-mos os oitenta anos do Aurélio, tivemos a oportunidade de ouvir uma gravação do tempo em que eles diziam também, à sua maneira, Escuta Portugal..., sim porque no PCP respeita-se a memória.

1 comentário:

Introspecção.luísa disse...

Um óptimo conto.
É um exemplo real de que quem segue o seu ideal, dá tudo, sujeita a própria vida por um ideal, a maior parte das vezes, fica na sombra como se nem estivesse por ali.
Aparecem depois uns pavões, para receberem medalhas, ganharem louros às custas de vidas de pessoas que nem vidas tiveram.