sexta-feira, 24 de abril de 2009

“ O MENINO ARY DOS SANTOS “


«A 18 de Janeiro de 1984 um cavalo à solta não devia morrer, uma estrela da tarde não podia enviuvar, os putos de bola de pano e dos arcos de Lisboa sentem de repente a orfandade da sua infância. A 18 de Janeiro de 1984, mais precisamente às 22,30, no fim do ultimo verso - «tenho saudades mãe» - morre José Carlos Ary dos Santos, o poeta de todos nós como lhe chamava Carlos do Carmo.
Morre de uma cirrose no coração. Morre de ternura pelos outros que é também uma forma de viver. Uma maneira de ser e de estar. Uma liturgia. Uma entrega desmedida, até fazer sangrar as palavras. Pode-se dizer que Ary alfabetiza a ternura para os que a desconheciam, deu a ternura em braille para aqueles que cegavam de tanta solidão. Porque ternura é o outro nome para Ary. Por ela entregou-se aos outros num desassossego de corcel, por ela foi um andarilho da Primavera, um cigano com a madrugada a tiracolo.
Deixou musicar-se, deixou-se das suas dores para ser o rei das chagas, dos pobres e dos podres. Tudo isto em nome da ternura, da procura que os desesperados fazem por um arco-íris de letras. Se procurou o aplauso não foi por facilidade, se procurou o público não foi por vedetismo, se procurou sempre a ternura foi também porque sabia que ele próprio também tiritava de solidão, mas não podia, nem queria desfolhá-la no palco ou no disco.
No fundo foi isso a sua vida, morrer de ternura pelos outros, morrer de tanto dar e não pedir nada em troca como o menino sentado ao fundo da sala com orelhas de burro porque disse ao professor que ternura era um bom adjectivo para a palavra amigo. Por isso a sua voz era uma bandeira vermelha toureando todas as feras, uma bandeira que desfraldava contra a tirania e a injustiça. Mas esta bandeira foi bordada por ele, em segredo, sozinho com a sua dor triste, na sua solidão de poeta, pagando cada verso com muito Gin e muito Português Suave (sem filtro). Bem se pode dizer que Ary doou a sua vida como se doa um coração para que a criança não tenha saudades da mãe. E talvez nisto residia a incompreensão e a inveja que o rodearam. Poucos perceberam que a sua poesia estava comprometida com a sua vida, que morrendo aos poucos pelos outros, fazia renascer em cada um o amor pelas portas que se abrem sempre que um homem sonha. Esta foi a sua entrega total, o seu canto franciscano por entre um caminho de cardos e de pedras. Só assim se entende que a sua poesia tenha chegado mais longe, mais perto dos párias numa pátria que segundo Ruy Belo não é «pátria, é só país».
A 18 de Janeiro de 1984 morre José Carlos Ary dos Santos, mas como nos diz Fernando Tordo - «Como um menino, ele passeia-se ontem e sempre pela loucura que foi, pela maravilha que é».

Este belo texto foi escrito pelo meu amigo e camarada Manuel José Sá Correia e publicado em 2001 pela Palimage-Imagem Palavra, no livro “CONVERSAS ENTRE NÓS” onde o autor em 25 textos homenageia 25 escritores portugueses.


Num momento em que comemoramos os 35 anos que decorrem desde a revolução dos cravos esta é a minha forma de homenagear dois comunistas de gerações e vivências diferentes mas que em mim forte influência tiveram.